Uma nova controvérsia em torno da aplicação da Lei de Cotas movimenta o cenário na Bahia. Em um concurso para preenchimento de 968 vagas em programas de residência médica para o ano de 2025, o edital reserva apenas 15 vagas para pessoas negras, apesar de a legislação estadual prever uma cota de 30% para pretos e pardos – o equivalente a 290 vagas. Ao identificar o descumprimento da norma, o Ministério Público Federal (MPF) emitiu uma recomendação para que o processo seletivo seja ajustado em até 48 horas, prazo que se encerra nesta sexta-feira (1º).
A aplicação das provas está marcada para 15 de novembro. O impasse se dá em torno da distribuição das vagas: o edital destina 10% das vagas para candidatos pretos e pardos, e apenas nas especialidades em que há oferta de dez ou mais vagas. Como a maioria dos hospitais não disponibiliza esse número por especialidade, a reserva foi limitada a 15 vagas no total.
A condução do processo seletivo é responsabilidade da Comissão Estadual de Residência Médica da Bahia (Cerem-BA), entidade vinculada à Comissão Nacional de Residência Médica. O MPF destaca que a legislação federal determina a reserva de 20% das vagas para negros em concursos públicos, enquanto o regulamento estadual, mais favorável, estabelece 30%. Ambos os percentuais superam os 10% estabelecidos no edital.
“O edital, contrariando as normas vigentes e o entendimento consolidado pelo Supremo Tribunal Federal, promove um fracionamento inadequado das vagas, resultando em apenas 15 reservas para pessoas negras e uma para candidatos com deficiência”, argumenta o procurador Ramiro Rockenbach, na recomendação publicada na quarta-feira (30). Segundo ele, o STF já determinou que os concursos não devem fracionar as vagas conforme a especialização, pois essa prática compromete a eficácia das políticas afirmativas.
O procurador ressalta que a recomendação busca garantir que as cotas sejam aplicadas com a devida abrangência, protegendo o alcance das ações afirmativas. Ele sugere que, caso necessário, seja aplicada uma média ponderada, reservando 20% das vagas para unidades federais e 30% para as estaduais, mas calculando os percentuais sobre o total de vagas por especialidade, não por instituição.
A recomendação do MPF surgiu após uma denúncia anônima. Em entrevista ao CORREIO, o denunciante, que preferiu não ser identificado, explicou que percebeu a irregularidade ao ler o edital para auxiliar uma amiga no processo de inscrição. Ele destacou que, conforme o edital, a aplicação dos 10% está limitada às especialidades com oferta de 10 ou mais vagas, o que reduz significativamente o alcance das cotas. “Na especialidade de Cirurgia Geral, por exemplo, 24 vagas deveriam ser destinadas a candidatos negros pelo critério de 30%, mas somente uma foi reservada, pois apenas o Hospital Geral Roberto Santos possui mais de 10 residentes na área”, detalhou.
Coincidentemente, no mesmo dia em que o MPF emitiu a recomendação, o Conselho Federal de Medicina (CFM) divulgou nota se opondo à implementação de cotas nas residências médicas. O CFM reconheceu a importância das ações afirmativas, mas afirmou que elas não se justificam nesta fase da carreira médica.
Esta é a terceira polêmica envolvendo cotas raciais na Bahia em três meses. No início da semana, o CORREIO noticiou o caso de um homem que assumiu uma vaga no Tribunal de Contas do Estado (TCE) como cotista, mesmo após a negativa da comissão de heteroidentificação. Em agosto, uma candidata acionou a justiça para garantir sua vaga como professora na Universidade Federal da Bahia (Ufba) pelo sistema de cotas.
Até o momento, nem o MPF nem a Secretaria Estadual da Saúde (Sesab) confirmaram se a Cerem-BA respondeu à recomendação ou informaram quais serão os próximos passos no processo.